CHRYSOPHYLLUM IMPERIALE

 

Imperador, nome de árvore

 

Texto de Pedro Foyos, jornalista e historiador português.

 

pfoyos@sapo.pt

 

 

O passado está sempre a ser necessário para explicar o presente

e o todo para explicar a parte.

 

Edward Burnett Tylor (1832-1917)

 

 

 

Começando pelo primeiro dia. Nesse dia fiquei sabendo que uma árvore brasileira, quase extinta, conhecida há duzentos anos pelo nome de Guapeba, possuía na atualidade a aristocrática designação científica de Chrysophyllum imperiale. Parte desse dia o passei na companhia de uma notável personalidade da Botânica portuguesa que me honra com sua estima, a diretora do Jardim-Museu Agrícola Tropical (uma instituição um tanto ignorada mas de que deveriam se orgulhar os lisboetas). Ao entrar nesse deslumbrante Jardim Tropical, o meu conhecimento se encontrava limitado a imprecisas referências históricas, a mais interessante das quais consistia no indício de ter sido esta a “árvore dos imperadores brasileiros, Pedro I e Pedro II”. Muito me intrigou o fato de, sendo isso verdade, estar agora a Guapeba na “Red List” das organizações internacionais superintendentes nas questões preservacionistas, com realce para a International Union for Conservation of Nature / IUCN que lhe confere um dos mais elevados graus de perigo de extinção. Tive então acesso a grande número de publicações científicas que fui destrinçando auxiliado pelas  sábias explicações da diretora anfitriã. Obtive um “retrato de corpo inteiro” da árvore no volume das Sapotáceas na monumental obra “Flora Neotropica” e no vetusto Dicionário de Pio Corrêa. Dezenas de livros “especializados” ignoravam a espécie. Me apercebi que, bibliograficamente, ela se encontrava também quase extinta. Mas saí do Jardim-Museu com extensas notas interrogativas que, numa perspetiva historica e jornalistica, me pareceram promissoras. Trazia comigo, também, a mágoa de ter ficado consciente de uma injustiça: a mais recente designação científica da “árvore dos imperadores” esqueceu, lamentavelmente, o nome de Karl von Martius: o género Martiusella (anterior identidade botânica da Guapeba) havia sido, de fato, uma homenagem de outros dois grandes botânicos, primeiro Jean Jules Linden e depois Jean Baptiste Louis Pierre, prestada ao cientista austro-bávaro. Eles saberiam certamente que esta árvore teve um significado especial para Martius, porventura mais que suas queridas palmeiras. Não qualquer espécie: exatamente esta, depois denominada imperialis e imperiale, numa associação óbvia aos dois imperadores que apoiaram sua prolífica carreira científica e em particular, em relação ao segundo, a imensa «Flora Brasiliensis», com vinte mil (!)  plantas meticulosamente estudadas e classificadas. (Em rigor, Pedro I prometeu mais que deu, mas… enfim, sabemos que ele andava por esses dias absorvido com a independência do Brasil).

A “árvore dos imperadores” havia também sofrido – estava entendendo agora – a inconstância dos botânicos. De Theophrasta passara a Martiusella, depois virara Chrysophyllum (um nome que já escrevi centos de vezes e sempre o fico mirando na incerteza da grafia correta).

  

No final de minha visita ao Jardim-Museu Tropical de Lisboa, meu saldo investigativo era, porém, aliciante: de fato esta bela árvore se atravessara (é um modo de dizer) no caminho de três homens: dois imperadores brasileiros e um botânico austro-bávaro. 

 

 

‘Tá vendo essa beleza de árvores? Pois foi papai quem plantou elas…


Primeiro “descobri” Martius, só depois tudo o resto. Uma “descoberta” ocasional, a partir de uma fonte alemã que fazia humor com o estilo diplomático do botânico em sua correspondência para a compatriota imperatriz Dona Maria Leolpoldina, mas sendo na realidade o marido, Dom Pedro I, o destinatário. Procurando não enfadar ambos com as aflitivas e mais que justificadas carências financeiras, Martius vai temperando sua alma remordida com a lembrança  agradável dos passeios e conversas havidas anos antes no Real Horto (virará Real Jardim Botânico no ano seguinte, talvez por influência de Martius). Nesse final de 1817, está o futuro imperador na companhia dos dois expedicionários da “Missão Austríaca” (Martius e seu companheiro zoólogo Johann von Spix), também da então noiva de Pedro, a graciosa arquiduquesa Leopoldina, recém-chegada da Baviera e, presumivelmente, do marquês de Sabará.

 

(Abro parêntese para assumir minha inteira responsabilidade na suposição de que estaria presente nesse convívio o marquês de Sabará. Este nobre militar, de seu nome João Gomes da Silveira Mendonça, compartilhara a direção do Real Horto com o italiano Carlos Antonio Napion, mas nesse final do ano de 1817 já dirigia sozinho o jardim também denominado “de aclimatação”, nas terras da Lagoa Rodrigo de Freitas. Pergunto, então: perante um tão ilustre grupo de convidados, como poderia estar ausente o diretor anfitrião? Atribuo importância ao tema porquanto se conta que o marquês de Sabará era especialmente zeloso em relação às frágeis árvores recém-plantadas pelo próprio príncipe Pedro, alegremente ajudado pela noiva Leopoldina e que na época eram ainda designadas pelo nome tupi de Guapebas. Estavam elas num espaço próprio cuja identificação “canteiro 10-A” não se sabe quando foi dada. Eram as árvores prediletas de Dom Pedro, ignorando-se o motivo do agrado: pelos frutos?, pela beleza da árvore? – talvez ambas as coisas. Outras plantas ali residentes eram, entre outras, os abacateiros, moscadeiras, cajazeiras e os sagueiros. Para quem estranhe que Dom Pedro tenha plantado ali as suas preferidas Guapebas, clarifico que ao tempo o Horto era uma área particular à qual acessavam unicamente as figuras proeminentes da corte. Também Dom João plantou ali em 1809 a famosa Palma-mater que geraria grande descendencia no Brasil. Está documentado que este príncipe regente era um passeante assíduo, o mesmo acontecendo mais tarde com o filho e o neto (Pedro I e Pedro II) que gostavam de merendar na mesa de granito (a “Mesa do Imperador”) quando visitavam o local. Naturalmente que Pedro I, ainda adolescente, recém-chegado de Portugal, por ali terá andado e talvez namorado com frequencia. Encerrando o parêntese, proponho a ideia plausível de o mesmo se ter passado com o muito jovem Pedro II, ali brincando à vista da mãe Leopoldina, a qual porventura não deixaria de informar com vaidade e sotaque franco-alemão: ‘tá vendo essa beleza de árvores?... Lindas mesmo! Pois foi papai quem plantou elas…).

 

             

Angústia de botânico é ter uma só vida e um projeto para mais nove

 

O príncipe herdeiro e Martius têm quase a mesma idade. Muito jovens, estão na casa dos vinte anos nesse primeiro e, quanto parece, único encontro pessoal, no ano de1817, quando o botânico aporta à «Nova Atlântida».

O tempo passou. O primeiro é agora imperador de um Brasil independente. Está apaixonado pelo poder que lhe concede a nova situação política. O segundo, regressado à longínqua pátria europeia, continua apaixonado, sim: por plantas. Vem acompanhando com avidez e uma morosidade informativa de meses os acontecimentos que fervilham naquele extraordinário «mundo da outra metade do mundo», porém recebe as notícias com moderada surpresa: ao abandonar o Brasil, ao fim de uma odisseia exploratória de três anos, já estava pairando no ar a mudança.

Não se sabe quantos “rogos” terá o imperador recebido do botânico (diretamente ou por meio de sua esposa), mas não custa adivinhar que tais “súplicas” financeiras terão sido frequentes. A “agenda política”, como se diria agora, impõe prioridades da qual estão excluídos, decididamente, assuntos menores, como ciência e investigação. O império florístico pode esperar. Martius espera e desespera. Apesar de tudo, escrevendo aos amigos distantes, vai confidenciando  estar feliz com a notícia da independência do Brasil (nunca saberá, porque morre pouco antes, que sua pátria bávara sofrerá um destino diferente, perdendo a independência em resultado da anexação pela Alemanha). Mas vive angustiado, batendo freneticamente à porta dos poderosos do mundo inteiro, pedindo ajuda para algo de insólito: tem à sua frente caixotes e mais caixotes contendo inumeráveis seres vegetais, oriundos do Brasil, que ninguém ainda estudou, desenhou, classificou; mais: milhares deles são ignorados pelos próprios brasileiros. Ele pede ajuda por uma razão bem simples de compreender: um tão grande projeto extravasa o espaço de uma só vida, a sua. Diz aos amigos que, sem ajuda, necessitaria de pelo menos dez vidas. Impossível. O argumento não demoveu nunca quem poderia ter competência em decretar tais exceções. E, parafraseando Malraux, o tempo, se fosse pessoa de bem, deveria parar para quem tem em mãos a herança do planeta.

Afortunadamente nascerá em breve um meninozinho que depois de bem crescidinho usará barba, mais tarde umas grandes barbas, sendo conhecido em meio mundo por essas barbas e pelo nome de Dom Pedro II. Ele não só saldará a imensa dívida de seu estouvado papai mas também mecenará o genial botânico até ao fim da vida deste, em 1868. A “Flora Brasiliensis”, uma das mais grandiosas obras do gênero alguma vez empreendidas no mundo, abre enfim velas nas  águas volúveis do conhecimento humano e, sob a égide das generosas barbas, a bom porto chegará para glória da Botânica e do Brasil.

 

Eu, republicano de raiz, sempre direi que um imperador destes me faria reconsiderar meus preconceitos desfavoráveis à monarquia.

 

 

Acredite, Dr. Martius, estamos fazendo tudo para salvar o Imperador

 

Deixemos a grande História, que, de hábito, está feita e refeita. A pequena história, ao invés, ainda proporciona grandes descobertas. A carta de Martius para a compatriota, esmolando em termos elegantíssimos a concretização dos prometidos apoios financeiros, termina em toada romântica. Martius alude às  saudades do Brasil e refere «as Guapebas junto das quais conversámos». Logo depois, uma pergunta que parece estranha mas que os destinatários bem entenderiam o significado: «Será que existem ainda?».
O que eram as Guapebas? Dizem-me que, na atualidade, constitui um gênero vegetal. Naquela época, porém, eram as árvores semelhantes a marmeleiros (ou qualquer árvore cujo fruto se parecesse com um marmelo) e assim designadas pelos índigenas da língua tupi (a expressão «Marmeleiro-do-mato» citada por Pio Corrêa não estaria ainda vulgarizada).
À data em que escrevo está se investigando qual a identificação atribuída a esta árvore na “Flora Brasiliensis”. Uma falsa pista levou a supor, há dois anos, que um desenho de uma folha do género Theophrasta seria da autoria de Martius e correspondente ao epíteto “imperialis” (primitiva identificação científica), mas afinal tratava-se de “obra de arte” e não propriamente botânica, figurando o nome “Martius” a título de homenagem prestada pelo autor do desenho ao ilustre cientista. Sequentes nomes científicos são, como mencionei, Martiusella imperialis e agora Chrysophyllum imperiale.

Bem, e por que recearia Martius que as suas Guapebas já não existissem? Para responder a essa pergunta teremos de fazer uma viagem no tempo, ao Brasil de 1817 – o ano em que Martius desembarca no Rio e também o ano da Revolução Pernambucana. Uma viagem ao tempo em que o movimento independentista começa a ser uma fogueira inapagável. Ao tempo em que o Governo da metrópole «ordena» a Dom João que incremente o mais possível a construção naval (madeira aí é coisa que não falta!). Martius percorre durante meses toda a região do Rio (Santa Tereza, Tijuca, Niterói e outras) e assiste ao princípio de uma atividade sistemática de abate florestal. Nos seus escritos é insistente e severamente crítico nessa denúncia. Antes disso, já os construtores navais haviam concluído que as tais Guapebas ofereciam madeira de soberba qualidade para os objectivos em vista. Um botânico sofrerá, mais que ninguém, ao assistir à dizimação de uma floresta. Terá Martius falado com o príncipe sobre o assunto? A pergunta «Será que existem ainda?», uma expressão significativamente singela e isolada, deixa supor que sim. As Guapebas junto às quais conversaram estariam presentes não só no Horto mas também nas conversas. E que teria respondido o monarca? Possivelmente o mesmo que declarou um seu ministro, anos depois: «Um Brasil independente necessita de uma forte marinha de guerra»... (... e de muitas, muitas Guapebas! – poderemos nós deduzir). Dois homens, um botânico e um futuro imperador, dilacerados pelas mais profundas contradições e angústias da condição humana. Afinal, não teriam ambos razão?
E se Martius aparecesse agora e nos interpelasse: «Será que existem ainda?». Que responderíamos? Talvez, envergonhadamente: «Sim, Doutor Martius, ainda existem algumas. Talvez dez. Ou vinte, ou trinta. Acredite que estamos a tentar salvá-las! Acredite que há por aí um grupo fantástico que está fazendo tudo para salvar o Imperador! Sim, um grupo fantástico. E numeroso. Veja só: seus nomes são Eugênio, Marco, Carlos, Antonio, Mauro, Sérgio, Dean, Tom, Rodrigo… e muitos outros!».



 

Três imperadores em Lisboa: o exilado, o tumulado, mais um plantado

 

Em ano indeterminado que provavelmente se situará entre 1876 e 1878, a história desta árvore fabulosa se estende a Portugal. Decorre por essa época o início da criação do Jardim Botânico da Universidade de Lisboa (JBUL), um projeto vagaroso que demorou uma eternidade a concretizar. Mas aparece agora um homem intrépido que vai mesmo passar à prática: o conde de Ficalho. Professor catedrático de Ciências, emérito botânico e escritor marcante da literatura portuguesa do séc. XIX, é uma figura ainda hoje admirada no meio científico e literário lusitano. Esse principal impulsionador do JBUL, nome igualmente prestigioso além fronteiras, começa por contatar os JB do mundo inteiro, solicitando cooperação no sentido de serem cedidos espécimes representativos das floras locais. Ora acontece que o conde de Ficalho e também o seu pai mantêm relações de estreita amizade com Dom Pedro II, advindo de tal circunstancia a probabilidade de o pedido ser dirigido ao próprio imperador. Este não hesitará na escolha. Aos seus olhos, é a Guapeba, a par do Pau-Brasil, a  árvore que representa em mais alta excelência a nação brasileira. A “árvore dos imperadores” é literalmente a sua árvore, cuja identidade científica nessa data –  Theophrasta imperialis – contém como epíteto específico uma homenagem a ele próprio e ao pai, Dom Pedro I. Acresce ser a árvore predileta de Karl von Martius, o notável botânico falecido poucos anos antes e que ele, Pedro II, mecenou durante décadas. (O gênero Martiusella, homenageando Martius, ocorreria duas décadas depois). Refletirá Pedro II: em Lisboa, a árvore irá viver  na mesma cidade e não muito longe do local onde está tumulado o pai. O imperador sabe igualmente que no outrora Real Horto e agora já designado Jardim Botânico do Rio de Janeiro continuam de ótima saúde as árvores plantadas pelo pai, quando jovem.

 

Cabe aqui uma referência ao exemplar existente no JB de Sydney. Em 1868, ano da morte de Martius, decorrem em todo o mundo homenagens ao botânico. É admissível que Dom Pedro II tenha procedido da mesma forma, ou seja, diligenciado o envio de uma destas árvores para aquele JB (e também para outros, quem saberá?). O que sabemos é que o exemplar de Sydney é ali chamado “Royal Tree” e foi plantado pelo príncipe Alfred, duque de Edimburgo, fato que permite intuir uma proveniência real (imperial, no caso). Tendo este cenário correspondência com a realidade, é extremamente interessante imaginar que as sementes provenientes do Imperador de Sydney e cuja germinação no Brasil está a ser tentada por Eugênio Arantes de Melo (Maio 2007) simbolizariam um comovente reencontro com a pátria, 140 anos depois…

 

Regressando ao Rio de Janeiro. Escolhida a árvore que viajará para Lisboa (uma escolha determinada possivelmente por Karl Glasl, então diretor do JBRJ), ela embarca em data indefinida, contudo podendo se balizar, como referimos, entre 1876/78. É possível afirmar que o espécime se encontrava num espaço do JB que teria ou viria a ter a identificação de “canteiro 10-A”. Menos compreensível é a circunstância de o barco ter feito escala na ilha de Marajó. Se alguém estiver em condições de formular uma justificação plausível para essa escala, tal contributo é bem-vindo.

Minha imaginação me leva agora a encenar a plantação da árvore no JB da Universidade de Lisboa. Estou vendo nesse ato, não um príncipe, mas um conde… Claro, como poderia o conde de Ficalho não estar presente? Mais: estará acompanhado do seu muito direto colaborador, Jules Daveau, jardineiro-chefe. A plantação se processa criteriosamente: a árvore vive a um passo de um curso de água. Apenas não teve critério a localização, posteriormente, de um sicômoro, a poucos metros, que está agora tentando estrangular o nosso Imperador. 

 

Em 17 de novembro de 1889, o exílio. Dom Pedro II é colocado para fora do Brasil. Chega a Portugal, onde encontra amigos, parentes e muita gente da vida intelectual e científica. Das 5 500 páginas de seu diário me foi possível consultar aquelas que se referem a este período doloroso e que para mim representava o de maior interesse histórico (prazerosamente realço a simpatia de Fatima Argon, chefe do Arquivo Histórico do Museu Imperial de Petrópolis e demais pessoal que me tratou excelentemente!). Se verifica então que, chegado a um sábado, logo na 2ª feira Dom Pedro II vai à “Politécnica” (designação da Escola Superior contígua ao Museu de História Natural e ao Jardim Botânico). Que vai  lá fazer? No diário menciona ter ouvido uma lição de física e outra de química, que parece não lhe terem agradado especialmente. Nessa tarde de 9 de dezembro de 1889, Dom Pedro II está a poucos passos da árvore-memória de seu pai, aquela que havia oferecido cerca de quinze anos antes ao Jardim Botânico. Incorro conscientemente no pecado da especulação dizendo que nesse momento   ele terá ido, em breve e solitário passeio, contemplar a “sua” árvore, a Guapeba do seu Brasil, «a nação que eu amei e amarei», a «pátria amada» –  como escrevera dias antes durante a viagem para o exílio.

Passam 48 horas, estamos agora na 4ª feira, o imperador se desloca a Queluz para ver «a câmara (aposentos) onde nasceu e morreu meu pai». Avançando quatro dias no calendário, é domingo, o imperador faz uma de suas primeiras visitas particulares: precisamente aos nobres Ficalho, o pai e o filho (sendo o último o “nosso” já conhecido conde). Dir-se-á que o imperador, em relação à hipotética “visita” à árvore representativa da memória de seu pai e do amigo de muitas décadas, Karl von Martius, poderia ter registrado tal fato em seu diário. Julgo que não. O assunto seria excessivamente íntimo. Os estudiosos de Dom Pedro II sabem que ele tinha uma noção muito exata da futura ressonancia  pública deste diário feito no decurso de 51 anos (!), também por esse motivo queimou centenas de folhas, ressaltando o longo período de 1842 a 1858. Já o mesmo não direi no que respeita à conversa com o conde de Ficalho, cuja grande paixão cultural continuava sendo, nessa época, o Jardim Botânico. É pena que o monarca exilado não tenha dado a conhecer um pouco do que foi essa conversa, porque o tema do Jardim e da Guapeba não foram decerto omitidos.

 

Já que falamos deste imenso diário, terá interesse sublinhar o amor que Pedro II tinha por seu pai. Nas datas de 24 de setembro são frequentes as notas do gênero: «Faz hoje (tantos) anos que morreu meu Pai». Também figuram os elogios ao trabalho de Martius, considerando-o «um verdadeiro monumento científico para o Brasil» (frase registrada em 10 de dezembro de 1862). Tanta admiração pelo botânico está patente no fato de, depois da morte deste, encontrando-se certa vez na sua antiga pátria bávara (entretanto anexada pela Alemanha) fazer questão de visitar a viúva. Mais tarde, em Filadélfia, se declarou feliz pela oportunidade de conhecer o filho de seu grande amigo. 

Por tudo isto, os mestres do Código Internacional de Nomenclatura Botânica permitirão que renove minha mágoa, porventura partilhada por todos os botânicos profissionais ou amadores e especialmente os brasileiros: é uma injustiça que tenha sido banido da Nomenclatura o gênero Martiusella ao qual pertencia a nobre Guapeba, uma árvore cuja “biografia”, das mais fascinantes da flora mundial, é indissociável de Martius.

 

 

Imperador não é um birosqueiro oferecendo vegetal de tenra idade

 

Uma narrativa histórica é singularmente desafiante quando o autor se depara com “elos perdidos”. Acontecerá o mesmo quando um arqueólogo não consegue coletar a totalidade dos fragmentos e procura sugerir, da forma que se lhe afigura mais verosímil, o que está em falta. De quanto fica descrito, tenho de admitir com honestidade que há dois elos inexistentes que tentei suprir imaginativamente, todavia sem ferir (pelo menos de forma grosseira) a verosimilhança. Ei-los: 1) a maravilhosa hipótese de ter ocorrido um “encontro secreto” de Dom Pedro II com a “sua” Guapeba, no Jardim Botânico da Universidade de Lisboa, na ocasião em que o imperador exilado esteve pertíssimo dela; 2) a probabilidade de essa árvore, porventura também a de Sydney, terem saído do grupo das plantadas em 1817 por Dom Pedro I e oferecidas por Dom Pedro II, entre 1868 (Austrália) e 1876 (Portugal), aos referidos Jardins Botânicos (ou ter ele influído nessas ofertas).

O primeiro caso se firma numa mera intuição. Quem estude a personalidade do “Imperador das Barbas” não pode deixar de concluir que era um homem imensamente sentimental. Que outra coisa poderá se dizer de quem registra em diário, durante 51 anos, não apenas suas observações e vivências mas também seus sentimentos? Dom Pedro II passou a vida viajando por dentro dele próprio, com todas as ciências e artes em cenário de fundo.

O segundo caso apresenta uma vulnerabilidade cronológica. A ser verdade o descrito, sobretudo no respeitante à plantação das Guapebas pelo príncipe herdeiro, em 1817, terá de aceitar-se que a árvore (ou árvores) embarcaram para Lisboa e Sydney com uma idade entre os 50 e os 60 anos. Parece ser muita idade para uma árvore. Ambas teriam agora 190 anos, uma meia idade na escala botânica de longevidade atribuída ao gênero.

A observação mais reticenciosa que já me fizeram respeita, porém, à idade de meio século para uma árvore desenterrada andar viajando pelo oceano.

Então, respondo: Imperador não é um birosqueiro de esquina oferecendo vegetal de peito, de tenra idade. Árvore oferecida por imperador terá de ser planta da alta, com experiência de vida, bem enraizada na hierarquia de seu reino vegetal. Irá pois Dom Pedro II expedir para seu amigo lisboeta, o conde de Ficalho, talvez também para Charles Moore, o insigne diretor do JB de Sydney, a Guapeba-imperial da mais altaneira aparência entre quantas foram por seu pai plantadas no antigo Horto das merendas e dos namoros. 

Convencerá meu argumento? Havendo quem discorde, sinto muito, mas eu passo. A verdade é que não tenho outro.

 

Concluindo…

 

Quanto fica aqui narrado não é mais que a nascente de um rio-livro que começa no Rio de Janeiro e enfrentará muitas cachoeiras até chegar à ilha de Marajó, onde o botânico Karl von Martius sofre um grave naufrágio do qual sobrevive muito a custo. Tem uma personagem vegetal (uma certa árvore bem brasileira...) e outras humanas, entre as quais destaco, além de Martius, o companheiro zoólogo Spix (cuja aventura no Brasil lhe custaria a vida, na sequência de doença contraída em águas contaminadas) e um jovem estudante português, apaixonado por árvores e pelo Brasil, que no século XXI está tentando reconstituir a história da “árvore imperial”.

 

Pretendo que este Imperador sem império, se extinguindo e nos incriminando silenciosamente, como é costume em seu reino, simbolize a tragédia das florestas perdidas.

    

Pedro Foyos

 

(Portugal, em Maio de 2007)

 

 

Sobre o autor

 

Pedro Foyos

 

Nasceu em Lisboa, Portugal, em 1945. Perfazendo uma carreira profissional de mais de quarenta anos como jornalista e diretor de publicações, se dedica também, atualmente, à literatura de ficção e de divulgação de temas das Ciências da Natureza. De entre os órgãos de informação onde trabalhou se destacam o diário República (único jornal de oposição à ditadura de Salazar) e o Diário de Notícias. Neste jornal de referência na imprensa portuguesa integrou a direção de redação, sendo responsável, nomeadamente, pela revista dominical e edições especiais. Fundou a revista  Nova Imagem, da qual foi diretor durante seis anos, e mais tarde a coleção Grande Reportagem.

Foi presidente durante uma década da Associação Portuguesa de Arte Fotográfica, tendo nesse período fundado e dirigido o Anuário Português de Fotografia.

É autor dos livros O Jornal do Dia e A Vida das Imagens. Organizou, a convite da Imprensa Nacional, uma antologia histórica, em dois volumes, consagrada a grandes momentos do jornalismo português no século XX. Estreou-se na ficção com O Criador de Letras (no prelo), um romance inspirado no tema da criação do alfabeto, tendo como cenário a vida quotidiana no Antigo Próximo Oriente. Tem em preparação, numa fase de pesquisa, um outro romance no qual uma árvore brasileira quase extinta (Chrysophyllum imperiale) ocupa um lugar de relevo.

Interessado desde muito novo pelos temas científicos, fundou o Centro de Estudos das Ciências da Natureza, ao qual continua ligado honorariamente e prestando colaboração na área da Botânica.

No campo do ensino e formação tem vindo a orientar estágios profissionais de Tecnologias

de Comunicação na especialidade de Psicologia da Leitura.

 

pfoyos@sapo.pt

 

 

                                          Pedro Foyos é casado com a jornalista e escritora Maria Augusta Silva,

                                              distinguida com o Prémio Internacional de Jornalismo, entregue

                                              pessoalmente pelo Rei de Espanha no ano de 1993.